sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Um pouco de Caravaggio



Gente, matéria sobre Caravaggio, que queremos compartilhar com vocês, pois achamos bem rica:



Na pintura A Conversão de São Paulo, uma encomenda para a igreja romana Santa Maria del Popolo, finalizada em 1605, um imenso cavalo se impõe como o elemento principal na tela diante do santo caído ao solo, os braços estendidos para o animal. Um incidente raio de luz estabelece contrastes de claro-escuro num cenário desprovido de Deus, de anjos ou de paisagem. Estupefato pela profanidade do quadro, um prelado local interpelou o autor: “Por que você colocou o cavalo no meio e são Paulo no chão? Este cavalo é Deus?” O artista respondeu: “Não, mas ele está na luz de Deus”.


A Conversão de São Paulo



A divindade geradora da luminosidade pictórica, nesse caso, nasceu de parto natural em 1571, em Milão, batizado de Michelangelo Merisi, mais conhecido como Caravaggio. Suas obras são exibidas pela primeira vez no Brasil: em maio estiveram em Belo Horizonte, na Casa Fiat de Cultura, e chegam agora ao Museu de Arte de São Paulo, o Masp, em São Paulo. A tela acima mencionada, ainda hoje exposta na capela em que foi instalada, é apenas uma das ilustrações de sua genialidade. O pintor levou ao extremo a evolução do chamado chiaroscuro, técnica convertida no DNA de sua produção ao longo da breve carreira – abruptamente encerrada por uma febre alta em 1610, aos 39 anos, quando estava já condenado à morte por envolvimento em diversos delitos – e inspiradora de mestres como o holandês Rembrandt (1606-1669). A forte oposição entre luz, sombras e penumbras, usada de forma sistemática, aliada ao realismo manifesto, constituiu a marca de sua plasticidade, em íntima relação com uma linguagem dramática. Na prática, o artista pintava em ambientes sombrios, com modelos e objetos mergulhados na obscuridade, aclarados por uma única fonte de luz vertical procedente do alto, formando um tipo de cave iluminada por um respiradouro. Isso resulta na abolição da luminosidade “universal”, comum até então, e na irradiação de uma luz dirigida e precisa, geralmente originada do canto superior esquerdo da moldura.

Caravaggio também teria feito uso de um sistema de câmera escura, com lentes e espelhos para a projeção das imagens sobre as telas, estimulado pelo filósofo e cientista Giovanni Battista della Porta, autor de A Magia Natural (1558), hipótese sustentada pelo artista britânico David Hockney. O crítico de arte francês Manuel Jover, um estudioso de Caravaggio, endossa: “Os historiadores estão cada vez mais convencidos disso. Mas ele não é o único e nem foi o primeiro. Já era uma prática em Leonardo da Vinci (1452-1519) e, provavelmente, nos pintores primitivos flamengos. Caravaggio se serviu desse expediente para acentuar a semelhança com a realidade na superfície dos objetos e dos corpos e também para ajudá-lo na reconstituição da cenografia”.


Medusa Murtola (1597)
Limbo

O fotógrafo e diretor norte-americano David LaChapelle defende que Caravaggio montava suas pinturas como fotografias. “Foi um fotógrafo antes da fotografia”, definiu certa vez. Já o cineasta norte-americano Martin Scorsese acredita que o pintor “teria sido, sem dúvida, um grande diretor de cinema”. Como exemplo, citou a própria A Conversão de São Paulo: “Ele escolhe um momento, não o absoluto do início da ação, e o espectador se vê imerso na cena. Funciona como uma mise-en-scène em um filme: poderoso e direto”. Mas nem sempre foi assim. Caravaggio permaneceu em uma espécie de limbo artístico até ser recuperado no início do século 20. O famoso historiador de arte italiano Roberto Longhi é considerado o maior responsável por essa redescoberta do pintor para o mundo, a quem apelidou de “mestre das trevas”. Segundo Longhi, Caravaggio colocou “em circulação a pintura mais revolucionária, talvez, de toda a história da arte sagrada”. Em sua definição, o claro-escuro caravaggista é um “fotograma poético”.

A recuperação do prestígio de Caravaggio deu-se no período em que a fotografia e o cinema ampliaram suas ambições artísticas. Para o crítico Manuel Jover, a coincidência é mais sutil do que determinante. “Não diria que ele é um precursor da fotografia, mas suas preocupações revelam que há uma relação: o fato de querer representar um instante preciso do drama, como se fosse um congelamento da imagem. Ele parava a ação em seu instante mais dramático, significativo e intenso.”

As razões para o seu temporário esquecimento estão, de acordo com os especialistas, em sua rejeição e seu menosprezo pelo academicismo reinante. Sua abordagem, contraditória com a era do classicismo, da antiguidade e com os nobres capítulos da mitologia, era condenada pelo sistema dominante na Europa. Caravaggio recorria ao homem da rua, a prostitutas, enfim, a um casting popular para servir de modelo em suas composições de temas sagrados. Uma das principais amostras dessa heresia é A Morte da Virgem, de 1605-1606, motivo de escândalo na época pela representação mundana da Virgem sagrada, o ventre inflado, inspirada na imagem de uma prostituta morta afogada e resgatada do rio.


Realismo e teatralidade

Ainda na questão do método propriamente dito, acredita-se que Caravaggio se distingue da grande maioria de seus contemporâneos por não adotar o desenho prévio às pinceladas na tela, o que influi diretamente no produto final (no início de julho especialistas italianos anunciaram a descoberta de uma centena de desenhos que o artista poderia ter realizado na juventude, mas nada foi confirmado ainda). Todas as decisões relacionadas à obra – o volume, a luz, as cores, a matéria, a composição – eram feitas em uma só ação. “Isso explica também um pouco da intensidade representativa e subjetiva”, acrescenta Jover.

O realismo e a teatralidade de suas telas, contraditórios e complementares, expressados no vigor de seu claro-escuro, confundem-se com sua turbulenta vida pessoal, caracterizada por violência e impulsividade. Arruaceiro, excessivo, Caravaggio amargou muitas prisões e, em 1606, tornou-se um fugitivo, condenado à pena capital após ter ferido de morte com uma espada o nobre Ranuccio Tomassoni, em uma disputa por causa de um jogo. Como analisa Manuel Jover: “Sua pintura nasce também dessa vivência trágica. Seu marcado claro-escuro, brutal e violento, contribui para a dramatização de sua pintura, que contém os aspectos contrastados, tenebrosos, de sua existência. O que dizer do quadro David e Golias (1609-1610), em que David segura a cabeça de Golias com um olhar incrível de carinho para a sua vítima? Ainda mais quando se sabe que a cabeça de Golias é um autorretrato de um homem perseguido, condenado à morte?” .

Texto de Fernando Eichenberg, correspondente do jornal O Globo em Paris, encontrado no site da revista Bravo: http://bravonline.abril.com.br.