segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Momento de suspensão


Sempre considerei a noção de suspensão uma das mais interessantes do teatro. "Suspensão não é congelar", dizia um diretor com quem trabalhei há tanto tempo que já (quase) nem lembro. Suspensão tem vida correndo nas veias, tem a esperança de que algo aconteça, o potencial da explosão - apenas ainda não se concretizou. Está no momento imediatamente anterior. Significa que algo aconteceu, que deixou tudo pairando no ar. Como naqueles momentos da vida nos quais você reconhece que encontrou o grande amor. Ou nos quais algo extraordinário está para ocorrer e parece que o tempo desacelera a tal ponto, que a impressão que temos é a de paralisia no próprio tempo. Mas eis a diferença: não parou. Está tudo lá, agitado, borbulhante. Apenas com externa aparência de imobilidade.

Estava pensando na noção de suspensão a propósito da última decisão que tomamos no Grupo Neelic: a de NÃO estrear a peça O Homem Sentado no Corredor neste momento de nossas vidas. Já afirmo de antemão que de forma alguma tratou-se de uma decisão fácil. Porém, acreditamos mesmo ser a mais sábia -  pelo menos sob o ponto de vista que somente podemos vivenciar no aqui-agora. O "bendito" e fatal 'excedente da visão', como dizia Bakhtin, do qual todos somos reféns.

Este post trata-se de um esclarecimento público, mas também de um compartilhamento de sentimentos a respeito do fato de trabalharmos com este tão delicado ofício que é o tal fazer artístico. 'Arte', dizia uma professora que muito marcou minha trajetória, 'por vezes tem mais a ver com aquilo que se escolhe negar do que com aquilo que se escolhe fazer'. Sim, negar é uma escolha. Acredito sinceramente que seja mais definitiva do que fazer. Saber negar requer uma abertura, um desprendimento do qual nem sempre sinto que sou capaz. Sobretudo devido à dúvida quanto ao acerto da decisão. Fazer, eu sei. Negar, não sei se sei. Mas sigo experimentando. Afinal, foi pelo amor à arte experimental que me dediquei nos últimos quase 10 anos ao Grupo Neelic (Núcleo de Estudos e Experimentação da Linguagem Cênica). Este conjunto de pessoas amorosas e dedicadas que alimentam juntamente comigo nossos sonhos e projetos coletivos, que me dão espaço para ser, viver e experimentar, e às quais venho em troca me dedicando por um terço da minha vida, já.

Quando penso nisso - no tempo que passou e em tudo o que vivemos e fizemos, sinto uma calma felicidade. E é por pensar que este sentimento não poderá estar-me enganando que percebo que a suspensão deste espetáculo tem mais a ver com um senso de momento do que com desistência. Não chegamos onde desejávamos neste instante, apenas. E então, eis que percebemos a valiosíssima vantagem da arte independente: somos donos de nossos passos. Não tendo um financiamento que nos imponha um limite de data de estreia, temos a opção de amadurecer ainda mais a obra que acreditamos necessite de um maior tempo. O bom vinho tem seu tempo. Assim, o teatro. Não é à toa que o deus grego de ambos é o mesmo: nosso querido Dioniso.

Penso nesta suspensão e penso em Nietzsche. Penso em deserção. Busco e encontro no site flanagens.blogspot.com.br as palavras:

"O equivalente espontâneo do desterro é a deserção. Desertar é ousar por conta própria enfrentar a solidão dos desertos. O gesto de insana lucidez do Timão de Atenas shakespeariano. Deserção de um rebanho, de uma facção, de uma versão compartilhada, de uma forma de vida genericamente aceita."

E aí percebo que talvez seja exatamente isso: estamos, neste momento, ousando, por conta própria, enfrentar a solidão dos desertos. O que encontraremos? Ainda não sei. Só o tempo dirá. Sei que fui designada por meu grupo - ao qual amo e me dedico com carinho - para trazer este recado a você que agora nos lê: esperemos. Um pouco mais. Dias? Semanas? Anos? Não sei. Não sabemos. Ainda. O tempo dirá. Ele sempre diz. Feliz de quem tem a percepção de entender seus indicativos.

Estamos certos na decisão? Estamos errados? Não é questão para certos ou errados. Agora sim trazendo Nietzsche em suas próprias palavras: 

"Cada filosofia é uma filosofia de fachada – eis um juízo ermitão: "Há algo de arbitrário se aqui ele se deteve, olhou para trás, olhou em torno de si, se aqui ele não cavou mais fundo e pôs de lado a enxada – há também algo de desconfiado nisso."
Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara."(*)

Assim, amigos, colegas de profissão, companheiros de jornada, me despeço por hoje. Sempre na expectativa de um dia mais colorido que o anterior. De um amor maior pela vida e pelo ser humano. Sem "humanismos", também. Na certeza de que a única certeza é a de que vamos errar e permanecer tendo dúvidas. Esperando sinceramente perceber onde o acerto estiver se escondendo. Des-cobrir. Exercitar a valiosa descoberta de estarmos vivos a cada dia. Extrair o melhor de cada dia. Somos quem somos, e somos felizes. Só isso já é um monte de coisa. 

Evoé, Baco! Evoé, meus amigos pessoais e companheiros fiéis de Grupo Neelic, fundamentais neste processo, no caminho que vamos construindo: Fabiana Montin, Vanda Bress, Pablo Corroche, Anelise Vargas, Eduardo Cardoso, Guilherme Dal Castel, Adriano Roman e ao nosso querido fotógrafo Kiran León. 

Um abraço, com carinho.

Desirée Pessoa.


(*) NIETZSCHE, Friedrich. Para além de bem e mal - prelúdio de uma filosofia do porvir. in: NIETZSCHE, F. Obras incompletas. (Trad. Rubens R. Torres Filho). São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 336.