Técnicas Corpóreas parte 01
A partir de hoje colocaremos aqui uma série de textos interessantes sobre o trabalho em artes cênicas. Este primeiro, é da Márcia Strazzacappa, cujo trabalho admiramos, e que conhecemos pessoalmente neste ano de 2010 em um encontro promovido pelo MEME, em uma situação muito agradével. Colocaremos ele aqui em três partes, a que segue abaixo é a primeira. A segunda postamos amanhã. Esperamos que possa ser válido para suas reflexões.
Técnicas Corpóreas
à procura do outro que somos nós-mesmos, ou “à la recherche de nous-mêmes ailleurs”
Márcia Strazzacappa
À sombra da macieira...
Todos sabemos que não foi a queda da maçã que permitiu a Newton o desenvolvimento de sua teoria sobre a gravidade. Várias maçãs já haviam caído antes, e seguramente centenas de outras continuaram (e continuarão) caindo sem despertar qualquer reflexão mais profunda a respeito das leis da física. O que foi importante para Newton naquele momento para que definisse as leis da mecânica não foi o fato da queda em si, mas a capacidade de, ao observar este fato, poder formular uma simples, porém precisa, questão: Por que os objetos (as maçãs) caem?
A história tem nos mostrado em inúmeros exemplos que todos os grandes pensadores de nossa época partem sempre de uma questão bem formulada. Longe de tentar me comparar a um grande pensador, mas no intuito de seguir um caminho ‘científico’, tentei identificar qual era a ‘questão’ que havia sido formulada e que me impulsionara ao desenvolvimento de minha pesquisa. Na minha vivência como dançarina, professora e pesquisadora do movimento corporal, percebi que não havia apenas uma pergunta, e sim várias, porém todas girando em torno de um eixo comum: a técnica para o artista cênico, uma vez que não há arte sem técnica.
Arte e técnica são duas palavras que, embora de origens diferentes, tiveram durante muito tempo o mesmo significado. Técnica vem do grego tekhnê que quer dizer arte. A raiz de arte, por sua vez, é latina ars, que até o século XVII era utilizada no sentido de técnica. Mesmo diante da diversidade de significados que estas duas palavras foram adquirindo no processo contínuo de evolução da linguagem, a significação primeira que coloca arte e técnica como um mesmo corpo, ajuda-nos a compreender o sentido da afirmação feita acima: não existe arte sem técnica.
A arte é o fim. A técnica será o meio de se chegar a este fim. Não basta a idéia ou a criatividade se não se tem meios e técnicas para sua realização. Da mesma forma como afirmamos que não existe arte sem técnica, podemos entender que toda técnica supõe uma arte e uma estética. Diferentes artes sugerem técnicas distintas. Assim como a evolução de técnicas pressupõe a evolução estética e vice-versa. Com o avanço da tecnologia, dos meios de comunicação, da cultura de massa, da internet, qual é a estética desta última década do milênio? Como ficam os espetáculos cênicos diante deste vendaval de informação e mídia? Qual a influência destes fatores sobre o fazer do artista cênico? Sobre a relação público - palco?
Se pegarmos como exemplo as últimas montagens dos grandes diretores de nossa década como Peter Brook, Pina Bausch, Ariane Mnouschkine, veremos a tendência generalizada à interculturalidade[1] e à plurilinguagem, como resultantes (ou agentes) desta evolução. A interculturalidade é evidenciada pela diversidade de nacionalidades dos artistas presentes num mesmo espetáculo. A tentativa de se ser fiel ao dramaturgo, tentando aproximar-se ao máximo os atores a seus personagens; a tendência de se padronizar físicos, esconder sotaques e regionalismos, diferenças de raça e idade, dão lugar a uma nova estética onde a fidelidade e semelhança não são mais valores, mas sim a mescla. São diferentes corpos, diferentes línguas, diferentes culturas dividindo o mesmo espaço cênico. Não bastasse a diversidade dos artistas em cena, temos a diversidade de linguagens, ou plurilinguagem, onde recursos de diversas artes são colocados à disposição da obra cênica. Assim, já não se define mais até onde vai o teatro e a partir de quando começa a coreografia; em que momento o bailarino toma o papel do músico; o instrumentista vira ator; e assim por diante. Não se fala mais em espetáculo teatral, musical ou coreográfico, mas em espetáculo cênico, ou simplesmente espetáculo.
Desta forma, não iremos abordar as especificidades do fazer cênico, isto é, não falaremos do ator, do bailarino, do mímico, do músico, mas do artista cênico em geral. Em inglês, a expressão performer é normalmente utilizada para designar o artista cênico, ou seja, aquele que realiza uma apresentação, uma performance. No Brasil, embora esta palavra tenha sido muito empregada, é freqüentemente entendida como ‘improvisação’ e conseqüentemente performer como ‘aquele que realiza uma improvisação’, (excluindo aqueles que elaboram seu produto, o artista do palco). Na tradução do livro “A arte secreta do Ator - dicionário de antropologia teatral”[2] optou-se pela expressão ator-bailarino, para traduzir o termo performer, para se evitar assim esta dúbia interpretação. Embora este termo ator-bailarino tenha sido adotado pelo meio artístico brasileiro, ele continua sendo restritivo, pois acaba excluindo o músico, o cantor, o mímico, que são igualmente artistas da cena. Desta forma estaremos utilizando a expressão artista cênico por apresentar-se como a que melhor designa o nosso sujeito de estudo.
[2], Barba, Eugenio e Nicola Savarese A Arte Secreta do Ator - dicionário de Antropologia Teatral” Trad. L. 0. Burnier e equipe. Campinas, São Paulo: Editoras Hucitec e Unicamp. 1995.
(CONTINUA...)
Fotografia de Dramen des Alltags, espetáculo da linha de Pesquisa do Neelic que tem o corpo do ator como ênfase do trabalho. Fotógrafo: Kiran Federico León.