Técnicas Corpóreas parte 03
Segue então a última parte do texto que estamos postando desde o dia 20, Técnicas Corpóreas.O texto é de Márcia Strazzacappa, atriz e pesquisadora que conhecemos no III Encontro MEME de Arte Experimental, deste ano. Poste seus comentários, envie e-mails para nós, vamos juntos começar a refletir as artes cênicas na contemporaneidade.
Vale lembrar que postamos o texto em três partes apenas para facilitar a vida, pois achamos melhor assim para o formato do blog. Se você tiver outra sugestão de formato, por favor, nos envie. E também que os textos colocados aqui serão sempre para fins de estímulo à reflexão, troca de ideias e fomento a questionamentos e problematizações relacionadas à criação e produção em Artes Cênicas.
Técnicas Corpóreas
à procura do outro que somos nós-mesmos, ou “à la recherche de nous-mêmes ailleurs”
Márcia Strazzacappa
A maçã nossa de cada dia
A pesquisa ora desenvolvida corresponde à continuação e aprofundamento do trabalho iniciado no mestrado, porém, sob um novo enfoque - o da etnocenologia, dada a sua abrangência. A etnocenologia é definida por Pradier (1995) como sendo “o estudo nas diferentes culturas das práticas e dos comportamentos humanos espetaculares organizados.”[1] Diferentemente do que propõe a Antropologia Teatral - corrente criada e difundida pelo diretor italiano Eugenio Barba - a etnocenologia não se apresenta como uma linha estética. Seu fim não é a criação de espetáculos cênicos a partir do estudo e incorporação de diferentes técnicas corporais, mas o desenvolvimento de um estudo sistemático sobre as diferentes manifestações culturais, (folclóricas ou não) à partir da análise dos processos de criação e da elaboração de um inventário das práticas espetaculares de diferentes culturas.
Marcel Mauss[2] (1936), sociólogo francês e um dos primeiros a nomear e classificar as chamadas técnicas corporais, afirmava que há duas maneiras de adquirí-las: uma referente ao aprendizado da criança (inculturação) e outra do adulto (aculturação). Na primeira, o aprendizado se faz de uma maneira espontânea, direta e ‘quase natural’. A criança vê e reproduz; observa e assimila o observado através da repetição. Já na segunda, no indivíduo adulto, este aprendizado implica num confronto entre a sua técnica pessoal já assimilada e a aquisição de uma nova. Nossa maneira de andar, sentar, gesticular são igualmente técnicas corporais adquiridas, que estão diretamente relacionadas à cultura, ao meio onde se vive. Estas técnicas ditas ‘espontâneas’, uma vez que foram adquiridas enquanto crianças em fase de desenvolvimento, são, segundo Barba ‘condicionamentos que nos aprisionam’[3], mas que segundo Lima, estes ‘mesmos condicionamentos que nos aprisionam são os mesmos condicionamentos que nos salvam, que permitem nossa sobrevivência no meio onde estamos inseridos’ [4]. Com tantas técnicas distintas desenvolvidas para tantos fins diversos, não haverá uma técnica única que sirva para todos os corpos e todos os fins. Portanto, não podemos falar na técnica (singular), mas nas técnicas (plural).
O artista cênico, enquanto indivíduo adulto, será sempre ‘estrangeiro’ diante do aprendizado de uma nova técnica ou mesmo junto a um novo professor de uma técnica já conhecida e incorporada, pois a aquisição de técnicas além de significar a incorporação de padrões de comportamento gestual, estético e cultural (aculturação), ela está também diretamente ligada à atuação do professor ou mestre. Martha Graham, dançarina norte-americana e uma das pioneiras da dança moderna na América, afirmava que nenhum de seus professores-assistentes tinha o direito de ensinar a ‘técnica Graham’. Esta só ela - Martha - podia ensinar. O que eles lecionavam era uma técnica de dança moderna ‘based on Graham’s technique’. Assim, mesmo diante de uma aula padrão, o papel do professor será sempre fundamental. É ele quem criará a situação de confronto, de ‘técnica estrangeira’, ao imprimir-lhe características próprias, sua linguagem, sua maneira de pensar e transmitir o movimento.
Assim, podemos concluir que, à priori, o artista cênico, ao buscar técnicas corporais, sejam elas estrangeiras ou não, ele estará, na verdade, entrando em contato consigo próprio, com sua própria cultura, seus costumes, sua gestualidade, assim como, seus vícios corporais, pois é confrontando-se com o outro que encontramos a nós mesmos.
Mais do que simplesmente mexer com o corpo fisicamente, as técnicas mexem (ou devem mexer) com o indivíduo como um todo. O trabalho técnico corporal diário para o artista cênico não deve funcionar apenas como a manutenção da capacidade motora nem como a dose diária de estímulos sensoriais. Mais do que “o pão nosso de cada dia”, ele deve ser a “maçã nossa de cada dia”, que não apenas nutre o corpo, mas que é capaz de levantar questões, suscitar à reflexão e acima de tudo, levar o artista à expressão - sua busca infinita de respostas.
[1] PRADIER, Jean Marie. Ethnoscénologie: la profondeur des émergences In La scène et la terre - questions d’ethnoscénologie, Internacionale de l’imaginaire. N. 5 Paris: Maison des cultures du Monde, 1996: p. 16.
[2] MAUSS, Marcel. “Les techniques du corps”. In Journal de Psychologie, XXXI., n° 3-4, 15 mars-15 avril 1936. Comunication présentée à la Société de Psychologie du 17 mai 1934. In: Sociologie et Anthropologie, Paris:PUF, 1966.
[3] Ver BARBA, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes. Campinas, São Paulo: Editoras Hucitec e Edunicamp, 1991.
[4] LIMA, José Antonio. “Movimento Corporal - a práxis da corporalidade”. Dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação (inédita). Faculdade de Educação, UNICAMP, 1994.
Imagem do espetáculo Sem Açúcar, do grupo Neelic - cena criada a partir de trabalho com o corpo dos atores. Fotografia de Kiran Federico León.