Gente,
Segue abaixo um dos muitos textos que encontramos durante a pesquisa de nosso recente espetáculo, Primeiro Amor.
É longuinho para blog, mas vale a pena se o assunto lhe interessa de alguma maneira. Por isso, resolvi postar assim mesmo.
Abraço,
Desirée.
O tópos do amor
Dentre todos os topoi literários, o amor é o lugar (tópos) de onde parte e para onde se destina a maior quantidade de narrativas e poemas. Num lance mais do que arriscado, talvez se possa dizer que todos os textos literários caminharam e caminham em volta de, sob, sobre, de, para esse tópos. Mas por que será que um tema comum a tantos textos ficcionais ao longo da história, no tempo e no espaço, é tido pelos estudos literários propriamente como um lugar? Trata-se de uma figura retórica clássica, que remete à ideia de uma fonte, ou sede, à qual se recorre com finalidade persuasiva. Roland Barthes também se refere aos topoi, ou lugares-comuns, como formas ou espaços vazios que são preenchidos estilisticamente por diferentes escritores. É necessário que haja um lugar onde a literatura se instale, de onde ela seja extraída e para onde ela aceda. Escritores, textos e leitores, mais do que ler e escrever, ficam, viajam, deslocam-se, movem-se e são transportados pelos próprios lugares em que se assentam.
Tomando como ponto de partida literal esse lugar-comum e universal – o amor –, penso que é possível estabelecer no mínimo quatro diferentes direções para os percursos literários do leitor brasileiro. Neste breve apanhado, quatro autores foram escolhidos para marcar esses caminhos: Bia Bracher, Fabrício Corsaletti, Bernardo Carvalho e Antonio Cicero. Como é fácil perceber, os quatro autores são contemporâneos e habitam o eixo Rio-São Paulo, um lugar estratégico, mas reduzido, do país. Não é o caso, por essa razão, de traçar, com base nesses quatro autores, um quadro completo da literatura brasileira atual. Escolhi aqui apenas esboçar variações no tratamento do maior dos topoi, o amor, para, com isso, sugerir algumas tendências literárias da produção brasileira contemporânea. É claro, também, que os autores selecionados para essas considerações são representativos na maneira como preenchem os lugares vazios com sua escrita das coisas e sobre as coisas.
Dentre todos os topoi literários, o amor é o lugar (tópos) de onde parte e para onde se destina a maior quantidade de narrativas e poemas. Num lance mais do que arriscado, talvez se possa dizer que todos os textos literários caminharam e caminham em volta de, sob, sobre, de, para esse tópos. Mas por que será que um tema comum a tantos textos ficcionais ao longo da história, no tempo e no espaço, é tido pelos estudos literários propriamente como um lugar? Trata-se de uma figura retórica clássica, que remete à ideia de uma fonte, ou sede, à qual se recorre com finalidade persuasiva. Roland Barthes também se refere aos topoi, ou lugares-comuns, como formas ou espaços vazios que são preenchidos estilisticamente por diferentes escritores. É necessário que haja um lugar onde a literatura se instale, de onde ela seja extraída e para onde ela aceda. Escritores, textos e leitores, mais do que ler e escrever, ficam, viajam, deslocam-se, movem-se e são transportados pelos próprios lugares em que se assentam.
Tomando como ponto de partida literal esse lugar-comum e universal – o amor –, penso que é possível estabelecer no mínimo quatro diferentes direções para os percursos literários do leitor brasileiro. Neste breve apanhado, quatro autores foram escolhidos para marcar esses caminhos: Bia Bracher, Fabrício Corsaletti, Bernardo Carvalho e Antonio Cicero. Como é fácil perceber, os quatro autores são contemporâneos e habitam o eixo Rio-São Paulo, um lugar estratégico, mas reduzido, do país. Não é o caso, por essa razão, de traçar, com base nesses quatro autores, um quadro completo da literatura brasileira atual. Escolhi aqui apenas esboçar variações no tratamento do maior dos topoi, o amor, para, com isso, sugerir algumas tendências literárias da produção brasileira contemporânea. É claro, também, que os autores selecionados para essas considerações são representativos na maneira como preenchem os lugares vazios com sua escrita das coisas e sobre as coisas.
O lugar do amor no jogo de montagem do real
Bia Bracher cria figurações da realidade histórica brasileira recente e atual, assim como de personagens de classes sociais marcadas, partindo de palavras e construções ficcionais que são tratadas como blocos de montar. As peças vão se sobrepondo, e os encaixes vão sendo lentamente descobertos, fazendo com que apareçam, muito gradualmente, os esboços do todo que vai se configurando. Bracher parte de peças inesperadas, que não pareceriam à primeira vista bater com a peça seguinte, para constituir pedaços que, somente juntos, e com muito trabalho, revelam a totalidade da casinha, do castelo, do posto de gasolina ou do quebra-cabeça a ser montado. Seria como uma narrativa cubista, não fosse o nexo causal que governa o todo, depois que ele é finalmente montado. Trata-se de uma literatura feita por pequenas simulações de enigmas que, mais tarde, revelam sua charada aparente. Em romances como Não Falei, Antonio, Azul e Dura e no livro de contos Meu Amor, esse recurso se repete, construindo uma fala em fragmentos, mas que não se reduz a isso. Os fragmentos são como vozes vindas de várias partes, contando versões plausíveis da história (sempre há uma história) e criando, com isso, a sensação de falta e possibilidade. Resta um “o quê?” sempre não resolvido, mesmo quando a história é quase totalmente revelada. É como montar um quebra-cabeça, vê-lo pronto, mas, na cena que ele representa, um homem não tem um braço, um nariz está quebrado. E o amor-lugar, ou o lugar do amor, nesse jogo de montagem do real, é um espaço meio sujo, marcado por dores tão fortes que mal pode ser pronunciado ou ouvido. É um amor quieto, não eloquente, por vezes sufocante e capcioso, mas que sempre anda pelas beiradas, percorrendo a narrativa nas entrelinhas e se pronunciando com todos os erros a que tem direito.
Bia Bracher cria figurações da realidade histórica brasileira recente e atual, assim como de personagens de classes sociais marcadas, partindo de palavras e construções ficcionais que são tratadas como blocos de montar. As peças vão se sobrepondo, e os encaixes vão sendo lentamente descobertos, fazendo com que apareçam, muito gradualmente, os esboços do todo que vai se configurando. Bracher parte de peças inesperadas, que não pareceriam à primeira vista bater com a peça seguinte, para constituir pedaços que, somente juntos, e com muito trabalho, revelam a totalidade da casinha, do castelo, do posto de gasolina ou do quebra-cabeça a ser montado. Seria como uma narrativa cubista, não fosse o nexo causal que governa o todo, depois que ele é finalmente montado. Trata-se de uma literatura feita por pequenas simulações de enigmas que, mais tarde, revelam sua charada aparente. Em romances como Não Falei, Antonio, Azul e Dura e no livro de contos Meu Amor, esse recurso se repete, construindo uma fala em fragmentos, mas que não se reduz a isso. Os fragmentos são como vozes vindas de várias partes, contando versões plausíveis da história (sempre há uma história) e criando, com isso, a sensação de falta e possibilidade. Resta um “o quê?” sempre não resolvido, mesmo quando a história é quase totalmente revelada. É como montar um quebra-cabeça, vê-lo pronto, mas, na cena que ele representa, um homem não tem um braço, um nariz está quebrado. E o amor-lugar, ou o lugar do amor, nesse jogo de montagem do real, é um espaço meio sujo, marcado por dores tão fortes que mal pode ser pronunciado ou ouvido. É um amor quieto, não eloquente, por vezes sufocante e capcioso, mas que sempre anda pelas beiradas, percorrendo a narrativa nas entrelinhas e se pronunciando com todos os erros a que tem direito.
O amor dramático, absurdo e inédito
Fabrício Corsaletti é um romântico rasgado tardio. Mas não se deve entender, no adjetivo tardio, nada de pejorativo, porque o que vem tarde, para Corsaletti, soa completamente atual. Atual na brevidade, no desbastamento de qualquer pompa e solenidade, para confessar um amor quase trágico, mesmo quando o léxico se compõe de batatas e despertadores. Sua poética é propriamente confessional, como a de um poeta romântico, mas, misteriosamente, é como se o eu de que os poemas falam ainda pudesse manter algo de impessoal. É um eu entregue, mas contido pela elegância, economia e estranhamento com que aborda seus pequenos dramas ou alegrias. E, com isso, mantém-se uma distância que contribui para que sua poesia seja simultaneamente cortante e cômica, ingênua sem se expor em demasia. Quando, por exemplo, num poema como “Exílios”, o poeta diz: “o nariz da minha mulher / lembraria o focinho / de uma capivara / de pelúcia / se vivêssemos / numa ilha / selvagem / onde as capivaras / fossem os únicos / animais / e corressem / risco de extinção”, o fato de ele falar do nariz de sua mulher, de compará-lo ao focinho de uma capivara, ainda por cima de pelúcia, ainda mais numa ilha selvagem, e, para piorar tudo, onde as capivaras correm risco de extinção, não só potencializa e dramatiza seu amor, como também o carrega de um quantum de absurdo e ineditismo, que acabam por manter esse mesmo amor guardado do perigo da identificação ou de outro ainda maior, o perigo da expressão sincera. O leitor ri e chora, aproxima-se e distancia-se desse amor desesperado, mas tão protegido em sua solidão engraçada.
Fabrício Corsaletti é um romântico rasgado tardio. Mas não se deve entender, no adjetivo tardio, nada de pejorativo, porque o que vem tarde, para Corsaletti, soa completamente atual. Atual na brevidade, no desbastamento de qualquer pompa e solenidade, para confessar um amor quase trágico, mesmo quando o léxico se compõe de batatas e despertadores. Sua poética é propriamente confessional, como a de um poeta romântico, mas, misteriosamente, é como se o eu de que os poemas falam ainda pudesse manter algo de impessoal. É um eu entregue, mas contido pela elegância, economia e estranhamento com que aborda seus pequenos dramas ou alegrias. E, com isso, mantém-se uma distância que contribui para que sua poesia seja simultaneamente cortante e cômica, ingênua sem se expor em demasia. Quando, por exemplo, num poema como “Exílios”, o poeta diz: “o nariz da minha mulher / lembraria o focinho / de uma capivara / de pelúcia / se vivêssemos / numa ilha / selvagem / onde as capivaras / fossem os únicos / animais / e corressem / risco de extinção”, o fato de ele falar do nariz de sua mulher, de compará-lo ao focinho de uma capivara, ainda por cima de pelúcia, ainda mais numa ilha selvagem, e, para piorar tudo, onde as capivaras correm risco de extinção, não só potencializa e dramatiza seu amor, como também o carrega de um quantum de absurdo e ineditismo, que acabam por manter esse mesmo amor guardado do perigo da identificação ou de outro ainda maior, o perigo da expressão sincera. O leitor ri e chora, aproxima-se e distancia-se desse amor desesperado, mas tão protegido em sua solidão engraçada.
Nas contorções dos amores errados, desesperados e fortes
As tramas narrativas de Bernardo Carvalho são como uma mistura de histórias romanescas, dramas sociais e mitologias. Mesmo que o mundo de que se fala seja em quase tudo contemporâneo e urbano, algo nele se dissocia dos acontecimentos circunstanciais e vem ou vai para um mundo sem tempo nem história, onde as coisas ainda estão em estado de enigma. Fatos estranhos acontecem, devem ser e serão decifrados, como nos melhores romances policiais, mas vários fiapos ficarão soltos, num lugar onde as coisas não conseguem ser resolvidas, porque estão fora da lógica convencional. Isso não significa que seus romances não possuam um fluxo narrativo coerente, mesmo se extremamente enovelado. Há uma vertigem de histórias múltiplas sendo contadas, uma dentro da outra e dentro da outra, até que venha a sensação de se perder, mas o próprio texto nos reencaminha para um eixo, ainda que instável. E, mesmo com todos esses ingredientes, todos tratados com intensidade próxima do máximo, acredito que o grande tema da obra de Bernardo Carvalho seja o amor. É nas contorções dos amores errados e, talvez por essa razão, desesperados e fortes que acontecem as muitas tramas de sua narrativa. Tudo parte dali e chega ali, numa linguagem de suspensão e medo, sempre sem saber o que pode acontecer, e, quando se sabe, sem o alívio esperado. A ambiência geral é dramática, e uma das razões pelas quais essa narrativa é tão atual é a maneira polifônica e inexorável como os amores fracassam.
As tramas narrativas de Bernardo Carvalho são como uma mistura de histórias romanescas, dramas sociais e mitologias. Mesmo que o mundo de que se fala seja em quase tudo contemporâneo e urbano, algo nele se dissocia dos acontecimentos circunstanciais e vem ou vai para um mundo sem tempo nem história, onde as coisas ainda estão em estado de enigma. Fatos estranhos acontecem, devem ser e serão decifrados, como nos melhores romances policiais, mas vários fiapos ficarão soltos, num lugar onde as coisas não conseguem ser resolvidas, porque estão fora da lógica convencional. Isso não significa que seus romances não possuam um fluxo narrativo coerente, mesmo se extremamente enovelado. Há uma vertigem de histórias múltiplas sendo contadas, uma dentro da outra e dentro da outra, até que venha a sensação de se perder, mas o próprio texto nos reencaminha para um eixo, ainda que instável. E, mesmo com todos esses ingredientes, todos tratados com intensidade próxima do máximo, acredito que o grande tema da obra de Bernardo Carvalho seja o amor. É nas contorções dos amores errados e, talvez por essa razão, desesperados e fortes que acontecem as muitas tramas de sua narrativa. Tudo parte dali e chega ali, numa linguagem de suspensão e medo, sempre sem saber o que pode acontecer, e, quando se sabe, sem o alívio esperado. A ambiência geral é dramática, e uma das razões pelas quais essa narrativa é tão atual é a maneira polifônica e inexorável como os amores fracassam.
O amor entre o passado clássico e o presente urbano
A vitrine, no poema aqui citado de Antonio Cicero, é propriamente um lugar – mais do que uma metáfora – onde se pode conhecer sua poesia, ou sua poé-tica. Trata-se de uma poesia espacial: a cidade, as ruas, as avenidas, os apartamentos, as pessoas como sítios onde ficar e aportar, os próprios corpos como lugares a serem explorados. E, em todos esses espaços, o eu se vê, se reconhece e experimenta uma sensação narcísica positiva, de agrado por estar vivo, naquele momento e tempo, mesmo com a consciência de perecibilidade aí implicada. O momento vai passar, mas há algo de bom nessa passagem: só ela permite que as coisas sejam irrepetíveis. Sua poesia, no mais das vezes metrificada e sempre no máximo de apuro lexical, sintático e rítmico, pode soar anacronicamente clássica, numa primeira leitura. Seria um engano julgá-la assim; Cicero recupera cânones poéticos porque sabe torná-los necessários, não meramente ornamentais. Eles são necessários na exatidão com que sua poesia recorta os lugares, na miniarquitetura que seus versos constroem, sem, entretanto, deixar de lado “pacotes de excursão”, “tênis”, “ônibus” e “água perrier”. O amor, nessa tensão entre o passado clássico e o presente urbano, é desarraigado, fugaz e, por ser fugaz, erótico. Não há drama na rapidez do contato amoroso, nem em parte alguma de sua poesia. A moldura métrica e rítmica impõe um rigor à dicção e aos objetos poéticos de modo que os torna sempre elegantes e altivos, mesmo quando tratam de algum sofrimento.
É o fato de estar em um lugar, e, no caso da literatura, de ocupar um lugar, que permite às narrativas criar também o não lugar (o atopoi), ou o lugar especial, de Aristóteles. É o lugar não reconhecível, inclassificável, aquilo que não se identifica prontamente, mas se diferencia de tudo. O amor é o maior dos lugares-comuns, mas é somente se assentando nesse lugar universal, e assumindo-o com todos os seus riscos, que é possível a cada autor estabelecer o que ele tem de impermanente e único. Bia Bracher, Bernardo Carvalho, Fabrício Corsaletti e Antonio Cicero escolhem o amor e, a partir daí, figuram mundos particulares. Lugares novos onde se quer ficar.
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/10/o-amor-como-lugar/
A vitrine, no poema aqui citado de Antonio Cicero, é propriamente um lugar – mais do que uma metáfora – onde se pode conhecer sua poesia, ou sua poé-tica. Trata-se de uma poesia espacial: a cidade, as ruas, as avenidas, os apartamentos, as pessoas como sítios onde ficar e aportar, os próprios corpos como lugares a serem explorados. E, em todos esses espaços, o eu se vê, se reconhece e experimenta uma sensação narcísica positiva, de agrado por estar vivo, naquele momento e tempo, mesmo com a consciência de perecibilidade aí implicada. O momento vai passar, mas há algo de bom nessa passagem: só ela permite que as coisas sejam irrepetíveis. Sua poesia, no mais das vezes metrificada e sempre no máximo de apuro lexical, sintático e rítmico, pode soar anacronicamente clássica, numa primeira leitura. Seria um engano julgá-la assim; Cicero recupera cânones poéticos porque sabe torná-los necessários, não meramente ornamentais. Eles são necessários na exatidão com que sua poesia recorta os lugares, na miniarquitetura que seus versos constroem, sem, entretanto, deixar de lado “pacotes de excursão”, “tênis”, “ônibus” e “água perrier”. O amor, nessa tensão entre o passado clássico e o presente urbano, é desarraigado, fugaz e, por ser fugaz, erótico. Não há drama na rapidez do contato amoroso, nem em parte alguma de sua poesia. A moldura métrica e rítmica impõe um rigor à dicção e aos objetos poéticos de modo que os torna sempre elegantes e altivos, mesmo quando tratam de algum sofrimento.
É o fato de estar em um lugar, e, no caso da literatura, de ocupar um lugar, que permite às narrativas criar também o não lugar (o atopoi), ou o lugar especial, de Aristóteles. É o lugar não reconhecível, inclassificável, aquilo que não se identifica prontamente, mas se diferencia de tudo. O amor é o maior dos lugares-comuns, mas é somente se assentando nesse lugar universal, e assumindo-o com todos os seus riscos, que é possível a cada autor estabelecer o que ele tem de impermanente e único. Bia Bracher, Bernardo Carvalho, Fabrício Corsaletti e Antonio Cicero escolhem o amor e, a partir daí, figuram mundos particulares. Lugares novos onde se quer ficar.
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/10/o-amor-como-lugar/